Poucas vezes falámos aqui no Contas acerca do fenómeno de rehipotecação bancária, contudo, para os leitores mais atentos, este fenómeno já corre nos meios de comunicação mais alternativos.
Basicamente, a rehipotecação é um fenómeno que consiste em abusar da confiança de alguém.
Quando pedimos um empréstimo, o banco pede-nos garantias, fiadores.
A hipoteca da casa é o caso perfeito em que é a própria casa que serve de garantia ao empréstimo.
Caso a devedor deixe de pagar o empréstimo, é a casa que lhe é sacada, liquidando assim a delinquência.
Nos meios bancários, é recorrente que a instituição A exija garantias à instituição B quando está disponível para lhe comprar dívida.
E normalmente, essas garantias traduzem-se em ativos detidos pela instituição B e que possuem um determinado valor.
São os ativos que servem de hipoteca ao empréstimo.
O problema da rehipotecação é este excesso de confiança do devedor em recorrer aos mesmos ativos para servirem de garantia a empréstimos que obteve de credores diferentes.
Como o devedor não está à espera de se tornar delinquente em nenhum deles, e muito menos nos dois, rehipotecar não tem problema, certo?
Pois, até ao dia em que se torna mesmo delinquente por razões "alheias" à sua vontade.
Em certo sentido os Estados já fizeram isto quando abandonaram o padrão-ouro, na medida em que era o próprio ouro que servia de garantia às notas em circulação.
O ouro foi substituído pela dívida emitida pelos próprios Estados.
E como se tornou essa dívida tão atrativa aos olhos dos investidores ao ponto de ainda ser considerada tão interessante como possuir ouro?
Porque rende uma determinada taxa de juro (melhor do que o ouro) e porque há uma confiança no sistema monetário que faz as notas e as moedas serem aceites em qualquer lugar. Para tal, o banco emissor deve cuidar da sua emissão e não abusar desse poder, evitando a todo o custo a sua desvalorização.
No papel o plano parece perfeito. O problema é quando passamos para o terreno. O resto é história.
Os privados, inspirados por este sistema aparentemente fantástico e com poucos custos associados (tb aparentemente), viram que poderiam obter múltiplos créditos, expandir negócios, multiplicar lucros, e em última análise, enriquecer arriscando cada vez mais.
Mas esqueceram-se que tal fenómeno é FRAUDE. Lá porque o Estado o faz e o mascare de legal, o mesmo não se aplica ao privado.
Reportar o mesmo ativo como colateral em mais do que uma operação financeira é fraude.
E pior ainda é apresentar como garantia certo tipo de ativos que nem sequer estão na sua posse, como metais e outros, bastando para isso forjar a existência de armazéns e faturas que comprovem que o produto está mesmo lá.
Na China começam agora a descobrir estas mega-fraudes em que muitos empresários pediram empréstimos a bancos, tendo declarado certos ativos como colateral que nunca existiram. Agora que a economia afroxou e os empréstimos entraram em delinquência, os bancos sacaram as garantias e foram a ver, não havia lá nem aço, nem cobre, nem nada daquilo que o devedor tinha comprovado que tinha.
Ver notícia no ZeroHedge
A rehipotecação é fenómeno frequente nos grandes bancos financeiros mundiais, sendo os produtos derivados ETF's (exchange traded funds) que transacionam metais preciosos uma bomba pronta a rebentar.
Basicamente os ETF's são praças virtuais onde podemos comprar ouro, prata, petróleo e outras commodities, usando os preços das praças de referência (reais) como Londres, Chicago, etc.
Nestas praças virtuais, o detentor destas commodities nunca chega a possuir o bem propriamente dito. Possui um comprovativo (receipt) desse mesmo investimento.
Como os investidores não têm grande interesse em possuir a commoditie, raramente a solicitam sob a forma física.
O gestor da ETF, sabendo desta evidência e sabendo que lhe custa dinheiro possui-las, acaba por não possuir nos seus cofres todas as commodities que vendeu nos comprovativos.
A esquema funciona bem, uma, duas, três vezes, até chegar um dia em que não funciona.
Quando muita gente ao mesmo tempo quiser resgatar o ativo, este não estará lá em quantidade suficiente. O resto é história.
Com os depósitos dos bancos passa-se coisa semelhante, na medida em que o dinheiro depositado pelos clientes é um passivo para o banco. Tem que ser remunerado a uma certa taxa de juro e custa dinheiro tê-lo lá na totalidade. A tentação é ter só uma parte, já que raramente o pessoal vai lá todo de uma só vez para o sacar.
Como houve uma alminha que resolveu estudar este fenómeno no século XIX, chegou-se à conclusão de que apenas 10% da população usava o dinheiro em simultâneo. E pronto, estava tecnicamente justificada a imoralidade que alimentaria o setor bancário até aos dias de hoje.
E suspeitamos que com o advento dos cartões de débito e das transações eletrónicas, menos dinheiro precisou de ser impresso e menos custos os bancos precisam de ter.
São os bancos que mais ganham com esta história do dinheiro eletrónico.
O fenómeno da rehipotecação não é coisa nova, mas antes uma adaptação para o setor privado de uma aldrabice que há muito fora aperfeiçoada no público.
Tiago Mestre
3 comentários:
Muito bom artigo/comentário.
"São os bancos que mais ganham com esta história do dinheiro eletrónico." Quanto a isto tenho a dizer que o Estado também ganha muito via impostos...
Culpar tecnologias mais eficientes e a alanvacagem dos maus investimentos, corrupção e da má gestão dos dinheiros públicos não me parece intelectualmente honesto. De resto os meus parabéns pelo blog como fonte de informação e crítica ao sistema actual.
Se me perguntam se concordo com alavancagens de 40x de bancos americanos para suportar mercados artificiais e o valor do dólar, não concordo.
Se me perguntam que a alavancagem aliada a investimentos da economia real em processos mais eficientes e necessidades de consumo utilitárias e recreativas, devidademente estudadas, concordo...
Por útlimo gostava de perguntar como, sem tecnologia de acesso livre, eficiente e debaixo custo, é que é possível alcançar o objectivo tão proclamado dos sistemas privados de moeda (Hayek, Minsk e afins). É obvio que tem de haver um acordo com os Estados no capitulo fiscal. Mas a adopção de sistemas paralelos é inevitável, quer os Estados queiram quer não.
Enviar um comentário